A mão invisível no mercado de trabalho

A mão invisível no mercado de trabalho

Postado em 02/05/2025

Por Fabiana Augusta — Procuradora Federal. Professora de Direito Financeiro e Tributário. Diretora da OAB-PE. Coordenadora da seção Opinião ADV do Blog da ESA-PE.


“A consciência aflora como atributo humano paradoxal: dá instrumentos para se tentar responder a essas indagações, possibilita que se busque o sentido da vida e também desponta como fonte de dúvidas, assinalando a ruptura de cada ser individual com um modo de existência originário, em que tudo era um todo cheio de harmonia. A consciência é condição de liberdade e, simultaneamente, aprisionamento.” — Clarice Lispector 

Esse belíssimo trecho colhido de Clarice em “A hora da estrela” reflete com precisão a ambivalência da consciência humana: se, por um lado, nos permite refletir, indagar e buscar sentido para a existência — tornando-nos, portanto, livres para interpretar e transformar a realidade, também nos lança no campo das dúvidas, das inquietações e das angústias que nos fazem sentir o peso das escolhas, das ausências e das limitações.

Iniciei o feriado do Dia do Trabalhador lendo Clara Mattei e seu notável “A Ordem do Capital”   e sendo impelida ao exercício da consciência do papel do trabalhador em nossa sociedade. Impossível não o fazê-lo: a obra de Mattei, refletida a partir da Itália fascista do início do século XX, nos revela, com uma clareza chocante e brutal, que a austeridade fiscal não é um simples exercício técnico de ajuste orçamentário, mas um instrumento político refinado, capaz de manter a ordem do capital, aprofundar desigualdades e tornar o trabalhador cada vez mais vulnerável. Segundo Clara Mattei, os cortes de direitos sociais e o encurtamento real dos salários promovidos por Benito Mussolini resultaram na vulnerabilização dos trabalhadores que, desempregados e sem direitos, foram pressionados a aceitar salários mais baixos e condições mais precárias, o que expandiu, inexoravelmente, a desigualdade social na Itália. A lição de Mattei é simples de aprender: políticas fiscais pautadas em cortes de direitos sociais e retração de políticas públicas, garante que o fluxo de riqueza siga para o topo. A austeridade promove a concentração de renda e amplia os ganhos de capital, algo extremamente agradável aos interesses das elites econômicas.

Dados econômicos recentes não permitem que se duvide das constatações de Mattei: segundo Relatório “As custas de quem” da Oxfam , apenas em 2024, a riqueza de cada um dos dez homens mais ricos do mundo cresceu, em média, US$ 100 milhões por dia. Repito: cada um dos dez homens mais ricos do mundo ganhou, em média, 100 milhões de dólares por dia. Se um deles perdesse 99% do que possui, ainda assim permaneceria bilionário. Isso significa que, se um mero trabalhador conseguisse guardar mil dólares por dia desde o surgimento da humanidade, há 315 mil anos, não alcançaria o patrimônio de apenas um desses homens. E o cenário se agrava quando ampliamos o olhar: hoje, 1% da população mundial detém 45% de todo o capital global, evidenciando o grau aterrador de concentração que estrutura a economia internacional. Agora a informação mais terrível: todos os bilionários do mundo com menos de 30 anos herdaram suas fortunas, e nas próximas três décadas, mais de US$ 5,2 trilhões serão transferidos para os herdeiros dessa nova aristocracia — quase sempre sem tributação, já que dois terços dos países não tributam heranças diretas. A América Latina, por sinal, lidera em volume de riqueza herdada, mas em apenas nove países há incidência de impostos sobre heranças ou doações. 

Aqui reside um ponto crucial: a tributação da herança não é apenas uma questão de arrecadação fiscal, mas um instrumento poderoso para reduzir a concentração de riqueza e abrir espaço para uma sociedade em que as pessoas possam, de fato, ascender pelo trabalho, pelo talento, pelo empreendedorismo — e não apenas pelo nascimento. Sem mecanismos que contenham a perpetuação automática das grandes fortunas, a sociedade fica presa em ciclos viciosos, em que poucos acumulam indefinidamente e muitos carregam os custos de um sistema que jamais os permitirá prosperar.

Além disso, a regressividade do sistema tributário brasileiro não se limita à ausência de tributação das grandes fortunas ou heranças. Ela tem outra face dolorosa e persistente: a pesada tributação sobre a folha de salários e, sobretudo, sobre o consumo. O Relatório anual da Receita Federal aponta que, sobre a folha de salário, há incidência de tributos na ordem de 25%. E, para além desta alta carga sobre o salário, o trabalhador ainda se depara com uma pesadíssima sobrecarga tributária sobre o consumo, que aumenta inversamente ao valor de sua renda. Segundo o IPEA, os trabalhadores brasileiros que recebem até dois salários mínimos utilizam mais de 48% do que recebe com impostos indiretos (como ICMS e IPI), enquanto aqueles que ganham acima de 30 salários mínimos gastam 26% com os referidos tributos. 

Assim, a carga tributária acaba incidindo proporcionalmente mais sobre os rendimentos do trabalho e consumo popular do que sobre os ganhos do capital. E é nessa mesma senda — marcada pela desigualdade estrutural e pela desesperança que silenciosamente permeia o povo brasileiro — que se inscrevem a pejotização, a reforma trabalhista que cortou direitos históricos dos trabalhadores e os tetos de gastos que asfixiam os investimentos sociais. São ingredientes emaranhados em um mesmo caldo político da receita de um alimento amargo que enfraquece a proteção coletiva, reduz a dignidade do trabalhador e abre caminho para a expansão do capital, enquanto milhões carregam, sozinhos, o peso do risco e da precariedade. Como Mattei nos adverte, a austeridade não distribui sacrifícios de forma justa — ela os concentra. E talvez o maior convite que este 1º de maio nos faça seja o de enxergar, com a consciência desperta e inquieta que Clarice tão bem incitou, pois a consciência é um gesto urgente de liberdade que, no fundo pode nos livrar da grande tragédia da sociedade vazia e concentradora tão bem resumida nas palavras de Nikolai Gogol, em O Capote: “Morreu, finalmente, um homem cuja vida transcorrera sem que ninguém reparasse nele.” 


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