A Unificação Eleitoral: Uma Miragem de Eficiência que Soterra a Democracia Local

A Unificação Eleitoral: Uma Miragem de Eficiência que Soterra a Democracia Local

Postado em 08/08/2025

Por  Raphael Costa - Advogado e Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-PE


A perene busca por eficiência e economicidade na administração pública, um imperativo inescapável em qualquer Estado, frequentemente serve de biombo para propostas que, sob um verniz de pragmatismo, corroem a estrutura democrática em sua base. A unificação das eleições — a proposta de se realizar, em um único pleito, as disputas para cargos municipais, estaduais e federais — é o epítome desse paradoxo. À primeira vista, a ideia seduz pela promessa de reduzir custos e otimizar o calendário cívico. Contudo, uma análise mais detida e tecnicamente aprofundada revela que tal medida não é senão uma falácia democrática, um solvente silencioso da autonomia municipal e, em última instância, uma anomalia na ordem federativa que a Constituição de 1988 tão arduamente buscou sedimentar. O que se ganha em logística e finanças, perde-se em representatividade, em debate qualificado e na essencial capacidade do eleitor de distinguir e ponderar as realidades distintas que cada esfera de governo lhe apresenta. É, portanto, imperativo desmistificar essa proposta, expondo seus efeitos deletérios sobre a saúde política e institucional dos municípios, a verdadeira célula-mater de nossa República.

O Esvaziamento Político e a Invisibilidade das Pautas Locais

A unificação eleitoral, ao fundir pleitos de naturezas tão distintas, opera como um funil ideológico que desvia o foco do debate público do que é mais próximo e tangível para o que é mais distante e abstrato. As pautas locais — saneamento básico, mobilidade urbana, segurança pública comunitária, gestão de resíduos e saúde primária — questões que, de fato, transformam o cotidiano do cidadão, perdem sua primazia e são relegadas a um plano secundário. O ambiente eleitoral, saturado por mega campanhas presidenciais e estaduais, com seus discursos polarizados e temas de repercussão nacional, cria uma névoa que obscurece as reais necessidades e desafios da comunidade. O candidato a vereador, por exemplo, não disputa a atenção do eleitor apenas com seus concorrentes diretos, mas com um batalhão de candidatos a deputados, senadores, governadores e, no epicentro, o candidato à Presidência da República. Este cenário não apenas invisibiliza as propostas locais, mas também desvaloriza a própria função do legislador e do gestor municipal, cuja atuação, embora vital, se torna um murmúrio em meio ao clamor das grandes narrativas políticas.

A invisibilidade das pautas municipais tem como corolário a diluição da atenção do eleitor. Em um cenário de pleito unificado, o cidadão se vê diante de uma profusão de candidatos e temas, onde a complexidade das eleições majoritárias e proporcionais em nível federal e estadual inevitavelmente ofusca o debate municipal. O eleitor, submetido a um volume excessivo de informações, frequentemente recorre a um atalho mental: o "voto por reflexo". Em vez de analisar criteriosamente as propostas para a cidade, ele tende a votar naqueles que estão alinhados com sua preferência para presidente ou governador. Esse fenômeno não apenas empobrece o debate local, mas também descaracteriza a essência da autonomia municipal, transformando o município em um mero satélite ideológico do poder central.

A Autonomia Municipal como Preceito Constitucional

A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 18, consagra a autonomia dos municípios como entes federativos. Essa autonomia, que não se confunde com soberania, é um pilar da nossa República, garantindo-se ao município a capacidade de autogoverno, autoadministração e auto-organização. A unificação das eleições, ao submeter o debate e a escolha de gestores locais a uma lógica de apelo nacional, representa uma afronta direta a esse preceito. A violação da capacidade de autoadministração é a consequência mais nefasta. A administração municipal, conforme o Artigo 30 da Carta Magna, detém competências essenciais para a saúde, a educação e a urbanização local. Contudo, quando o voto para prefeito e vereador é influenciado por campanhas nacionais, a legitimidade democrática para o exercício dessas competências se enfraquece. O gestor eleito sob a sombra de um líder nacional pode ter seu foco desviado das reais necessidades da cidade, priorizando alinhamentos políticos em detrimento de uma gestão pragmática e voltada para a comunidade.

Conclusão

A premissa de que a unificação das eleições seria um avanço revela-se, ao fim e ao cabo, uma perigosa miopia democrática. Ao tentarmos curar uma enfermidade logística, inoculamos no corpo político uma patologia federativa que compromete sua vitalidade. A proposta, desprovida de uma análise jurídica e política aprofundada, ignora que o Brasil é uma República Federativa por designação constitucional, onde o município não é uma mera extensão do poder central, mas sim o ente mais próximo da realidade do cidadão. Portanto, a solução para os desafios eleitorais não reside na centralização, mas, paradoxalmente, na valorização do que é local. Fortalecer a democracia não é unificar, é diversificar. É dar voz e visibilidade a cada esfera de governo, permitindo que o eleitor possa se debruçar sobre as pautas de sua cidade sem o ruído das disputas nacionais. O caminho a ser trilhado é o de resguardar a autonomia do voto municipal, garantindo que a escolha de um prefeito e de um vereador seja um ato de reflexão sobre o destino da comunidade, e não um mero eco da preferência por um líder nacional.