
Nenhum Filho é de Segunda Classe: O Retrocesso Incostitucional do PL Nº 4.604/2025
Postado em 02/10/2025
Por Graciliano Cintra - Advogado, Professor em Direito das Famílias e das Sucessões, Conselheiro Estadual da OAB/PE, Pós-graduado e mestre em Direito.
Eu tinha sete anos quando ouvi uma frase reveladora de uma verdade humana, que até então desconhecia, e que de alguma forma moldaria minha trajetória pessoal e profissional: “eu tenho duas mães, uma de sangue e uma de coração”. Quem disse isso foi um amigo de infância, filho biológico de uma empregada doméstica que trabalhava no prédio em que eu morava à época.
Ele vivia ali desde tenra idade, com a mãe biológica, com os patrões de sua mãe, e com os filhos biológicos destes, sendo que os empregadores de sua mãe biológica, desde muito cedo, apegaram-se à criança, e com ele formaram laços de afetividade, passando a exercerem um papel muito especial na vida dele, de cuidado, carinho, orientação e de responsabilidade.
Aquele menino, que era eventualmente visitado pelo pai biológico, cresceu com duas mães e dois pais. Os pais biológicos se foram pela idade; os irmãos afetivos também se foram, mas por motivos diferentes, constituíram família, não tinham mais tempo para os pais; o menino ficou. Na velhice, os pais afetivos contaram com aquele menino, filho afetivo, que retribuiu o afeto, o cuidado, o carinho, a responsabilidade.
Muitos anos depois fui revisitado por este menino, agora, não me chamava mais para jogar bola ou andar de bicicleta, mas tinha me achado nas redes sociais e buscava orientação jurídica. O pai do coração morrera, e os irmãos não o reconheciam como tal. Partilharam a herança sem o incluir. Mas o que o preocupava não era isso, era o fato de a mãe afetiva, que ele agora cuidava sozinho, começava a dar sinais de Alzheimer, e ele tinha medo que os irmãos a tirassem da casa em que moravam, quando as consequências da doença se asseverassem, medo este compartilhado pela mãe do coração.
Este menino, me ensinou o que era a afetividade na prática, ainda aos meus 7 anos; e me provocou, aos 20 e tantos, a estudar cientificamente a matéria, o que me levou poucos anos depois a escrever minha dissertação de mestrado: O reconhecimento legal da filiação socioafetiva através da experiência do Estado de Pernambuco. Isso me abriu para observar outras situações de filiação socioafetiva, muito significativas, nas minhas próprias relações familiares... mas isso fica para outro dia.
Nos meus estudos sobre o tema, deparei-me, de pronto, com o saudoso jurista João Baptista Villela, pioneiro na matéria, e que brindou a todos nós com seu maravilhoso artigo “Desbiologização da paternidade”, publicado ainda em 1979. Nele, o eterno professor leciona que a paternidade não é uma imposição da natureza, mas uma construção cultural: nasce do compromisso, da convivência, da escolha de assumir o outro como filho. Ser pai, dizia Villela, reside antes no serviço e no amor que na procriação. Essa reflexão abriu a porta para uma revolução no Direito das Famílias brasileiro, que percebeu que a afetividade é a cola que une as pessoas em relações de parentalidade.
A doutrina contemporânea reforçou esse entendimento. O Prof. Paulo Lobo, extraiu da norma constitucional o princípio da afetividade, reconhecido hoje como estruturante do Direito das Famílias. Segundo ele, a família moderna não é mais unidade econômica ou núcleo de reprodução, mas comunidade de afeto e solidariedade. A Constituição de 1988 consagrou essa virada ao proibir qualquer discriminação entre filhos. Nascia, ali, a família fundada na dignidade e no cuidado.
É nesse contexto que se consolida a filiação socioafetiva. Trata-se do vínculo fundado na posse de estado de filho: quando alguém é tratado, chamado e reconhecido como tal. O nome, o trato e a fama de filho compõem essa tríade. A criança que cresce com padrasto ou madrasta presentes em todos os momentos da vida; o filho de criação, reconhecido por toda a comunidade; o sobrinho criado por tios que assumiram o papel paterno; os netos criados por avós que, na prática, foram pais. Essas são algumas das situações em que o Direito apenas reconhece aquilo que a vida já consagrou.
É importante destacar que a filiação socioafetiva não se confunde com a adoção. Na adoção, rompe-se o vínculo anterior e se estabelece uma nova filiação, exclusiva. Já a socioafetiva admite coexistência com a biológica, criando uma parentalidade dupla. São institutos distintos, igualmente respeitáveis, mas não intercambiáveis. A clareza dessa diferença é essencial para compreender a singularidade da socioafetividade.
Nos últimos anos, a jurisprudência e a doutrina brasileiras avançaram no reconhecimento dessa forma de filiação. No Estado de Pernambuco, de maneira pioneira, o Desembargador Emérito Jones Figueiredo, atual presidente do IBDFAM/PE, e à época Corregedor-Geral de Justiça do TJPE, editou o Provimento 09 de 2013, que possibilitou o registro da filiação socioafetiva pela via cartorária. Posteriormente, o Conselho Nacional de Justiça editou Provimento possibilitando o registro em nível nacional, e o Supremo Tribunal Federal reafirmou a igualdade entre filhos biológicos e socioafetivos, consolidando o que já estava implícito na Constituição. A realidade das famílias brasileiras estava, enfim, encontrando guarida na lei e nos tribunais.
Nesse cenário, é surpreendente — e preocupante — que surja o Projeto de Lei nº 4.604/2025, de autoria do deputado Kim Kataguiri (UB-SP), propondo excluir os vínculos “meramente socioafetivos” do conceito de parentesco e impedir que deles decorra o direito a alimentos. Em síntese, o projeto pretende reduzir a socioafetividade a nada, relegando-a ao campo dos fatos sem efeitos jurídicos.
A justificativa apresentada fala em segurança jurídica. Mas a verdade é que se trata de insegurança travestida em projeto de lei. Retirar os efeitos da filiação socioafetiva é violar a Constituição, que em seu artigo 227, § 6º, estabelece a absoluta igualdade entre filhos, vedando qualquer forma de discriminação. É ignorar décadas de construção doutrinária e jurisprudencial. É, sobretudo, voltar as costas à vida real de milhares de brasileiros que foram criados e reconhecidos por pais e mães do coração.
Em contraste, o Projeto de Lei nº 04/2025, que trata da reforma do Código Civil, aponta um caminho mais coerente. A proposta de reforma do Código Civil (PL 04/2025) já avança ao reconhecer a socioafetividade em diversos dispositivos, inclusive prevendo a multiparentalidade (arts. 1.617-A e 1.617-B) e distinguindo claramente filiação socioafetiva de afinidade. O art. 1.512-G, parágrafo único, é cristalino: os enteados não se presumem filhos socioafetivos. Ou seja, o legislador reconhece que padrastos e madrastas podem, sim, construir laços de socioafetividade, mas que esse vínculo, a princípio, é de afinidade. Para que seja reconhecida a socioafetividade é necessário o estado de filho.
O PL nº 4.604/2025, portanto, não é apenas um retrocesso legislativo. É um ataque frontal à Constituição e um insulto à experiência concreta das famílias. Ele cria categorias de filhos: os legítimos, de sangue; e os ilegítimos, de afeto. E, ao fazer isso, repete velhos preconceitos que a Constituição de 1988 se encarregou de sepultar.
O argumento de que o afeto não pode gerar obrigações jurídicas revela uma visão distorcida da realidade. O afeto que funda a filiação socioafetiva não é sentimento fugaz, mas compromisso socialmente reconhecido, consolidado no tempo. Quem trata como filho, quem assume como filho, é pai ou mãe de fato, e o Direito não pode virar as costas a essa verdade.
Ao final, volto àquele menino de minha infância, que tinha duas mães e dois pais. A proposta do PL nº 4.604/2025 é um insulto a ele e a todos os que vivem a realidade da socioafetividade. É uma ofensa à dignidade de quem cresceu sustentado pelo cuidado, de quem encontrou no afeto o seu chão e a sua identidade.
Não é apenas um detalhe técnico ou uma divergência interpretativa. É uma escolha entre reconhecer a verdade das famílias brasileiras ou negar-lhes existência. Entre afirmar a Constituição ou rebaixar a cidadania. Entre avançar civilizatoriamente ou retroceder para um passado de discriminação.
O Parlamento não pode, sob o pretexto de “segurança jurídica”, legislar contra a vida concreta, contra a Constituição, contra o amor que sustenta as famílias. A lei não pode apagar o que a realidade insiste em afirmar: pai e mãe são, antes de tudo, aqueles que cuidam, amam e se responsabilizam.
Envie seu artigo de opinião jurídica para secretaria@esape.com.br, a fim de que seja publicado na seção Opinião ADV do Blog da ESA-PE após conformidade editorial.