
Reflexões Processuais de Maio: a Mãe Advogada e a Lei Júlia Matos
Postado em 05/05/2025
Por Emília Queiroz — Advogada, professora, mestre em Direito e Diretora de Pós-Graduação da ESA-PE
Por fidelidade ao leitor, fixo inicialmente meu local de fala, pela ousadia de abordar tema tão impactante e sensível no cenário sociojurídico nacional. Sou mulher, mãe e advogada. Nascida e criada por uma igualmente mulher, mãe e advogada. Com a devida vênia à Simone de Beauvoir, já nasci mulher, atingi minha plenitude com a maternidade e descobri meu substrato com a advocacia! Então, sou pura gratidão por ser mulher, mãe e advogada. Mas, nem sempre foi nem é tudo tão fácil e romântico.
Compatibilizar as missões de mulher e mãe soa natural numa sociedade patriarcal como a nossa, mas acumular a elas a função de advogada é extremamente desafiador, fazendo-me pensar que Sobral Pinto se inspirou num leading case de alguma mulher advogada para criar sua frase célebre: “a advocacia não é profissão para covardes”, pelo que ouso até arriscar dizer que “a advocacia feminina não é profissão para mulheres fracas”. Explico, a mulher é socialmente vulnerável e exercendo certas profissões pode até manter-se assim, mas para ser advogada, tem que ser resiliente e forte para dar conta da profissão que é constitucionalmente prevista como essencial ao perfazimento da Justiça!
O caso é que minha mãe se tornou mãe e advogada na década de 70, quando eu nasci, num período delicado democraticamente, principalmente para profissionais que lidam com ideias e articulações, imaginem para uma mulher com esse perfil! Já eu, tornei-me mãe e advogada na década dos anos 2000, com o pavor generalizado da iminência do fim do mundo! Mas, o mundo não acabou na transição de 2000 para 2001, e, como diria Maria da Penha, “sobrevivi, posso contar”: as advogadas precursoras e contemporâneas minha e da minha mãe, não tiveram qualquer “regalia” em razão do gênero nem da maternidade.
Em termos gerais, independente da profissão, o mercado de trabalho passou por três movimentos em relação à mão de obra feminina: exclusão social (consideração da inferioridade da mulher em relação ao homem – impedimento dela trabalhar fora de casa); integração social (expurgo da diferença entre mulher e homem – possibilidade de trabalho externo dela, desde que com padrões masculinos) e inclusão social (consideração de diferença entre mulher e homem, mas sem inferioridade – possibilidade de trabalho externo dela, respeitadas suas particularidades).
Esse tráfego que tirou a mulher de casa e lhe abriu as portas do mercado de trabalho deve muito ao movimento universal feminista. Até mesmo a conquista do direito de trabalhar nas fábricas durante a revolução industrial foi um passo necessário para se chegar ao atual modelo inclusivo. Nesse início da vida fora de casa, para a mulher trabalhar tinha que se tornar homem. Explico, podia trabalhar no chão da fábrica, mas desde que negasse seu potencial de maternidade biológica e se submetesse à laqueadura sem indicação nem critérios médicos seguros.
O passo que se deu para inclusão nesse ponto foi caricaturizado pela lei que criou a licença maternidade porque se garantiu à mulher o direito à diferença. Passavam as mulheres empregadas que se tornassem mãe a terem inicialmente, em 1943 pela CLT, direito a 84 dias de salário pago mesmo estando em casa para recuperar-se do parto e acolher o filho. Com a Constituição de 1988, esse prazo aumentou para 120 dias. Mas, estamos falando de mulheres operárias.
E as mulheres advogadas? Bem, essas benesses não cabem só a operárias, mas a mulheres mães empregadas. Se a advogada tem vínculo empregatício com alguma empresa ou escritório de advocacia, tem garantido esse direito genérico. Ocorre que, como é público e notório, o maior número de advogados é autônomo. Em assim sendo, desenvolvem sua profissão muitas vezes sozinhos e são submetidos às exigências de prazos processuais independente de vínculo empregatício ou não. As mulheres advogadas gestantes, lactantes ou mães careciam de proteção específica e customizada à sua peculiaridade profissional.
O ano de 2015 foi extremamente fértil de legislações e proposições impactantes. Foi assim com o CPC (primeiro a trazer normas fundamentais de processo), a Agenda 2030 da ONU (com o ODS 5 para empoderamento de mulheres) e o Provimento 164/2015 do CFOAB – Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada (isenção total ou parcial da anuidade do ano do parto ou adoção, etc).
Todo esse movimento precedeu e se fez coroar com a Lei 13.363/2016, que teve seu fundamento num leading case comum na prática forense: uma advogada gestante precisou fazer uma sustentação oral em favor de seu cliente no CNJ e, dada sua condição, requereu prioridade na pauta, mas foi negado pelo então Min. Joaquim Barbosa, por isso, esperou por dois turnos para iniciar sua atuação. Foi brilhante no seu ofício e ganhou, mas mesmo só estando com 6 meses de gravidez, saiu de lá já com contrações para o hospital, onde deu à luz uma menina prematura, com pouco mais de 1kg, pelo que permaneceu em UTI por 61 dias.
Esse caso, que se tornou emblemático e mostrou que na prática jurídica a mulher advogada vivia como as operárias na revolução industrial: mulheres que para trabalhar tinham que negar ou esconder a maternidade!
A advogada era Dra. Daniele Teixeira, que hoje é Ministra do STJ, pelo 5º constitucional, e a menina era Júlia Matos, que assim como Maria da Penha, deu nome à lei que se baseou na sua experiência para proteger outras mulheres!
Foi assim que surgiu a Lei 13.363/2016 (Júlia Matos), que alterou o recém vigente CPC/2015 (art. 313), incluindo mais uma hipótese de suspensão processual para maternidade (biológica ou socioafetiva, desde que a seja única patrona) de 30 dias e outra para paternidade nos mesmos critérios, sendo com o prazo reduzido de 8 dias. Tão impactante a novel legislação que alterou também o Estatuto da OAB (art. 7º) para incluir mais prerrogativas à mulher advogada, como: não passar pelo Raio X, vaga especial de estacionamento, suspensão de prazos processuais (também alterado no CPC 313), preferência em sustentações orais e audiências, direito à creche.
Depois dessa lei tivemos ainda mais progressos que fortalecem o processo de inclusão da mulher advogada, como a Lei Mariana Ferrer e o Protocolo de Julgamento em Perspectiva de Gênero (CNJ), mas esses são assuntos para próximas conversas que ainda teremos.
Pena que eu e minha mãe não pudemos usar das prerrogativas específicas da mulher advogada e mãe, mas que bom que nossa luta e de tantas outras colegas possibilitou que as advogadas millennials já possam exercer sua missão tríplice de forma mais conveniente. Por enquanto, o importante é o leitor se conscientizar do mister da implementação dos ditames universais de inclusão da mulher advogada para que se perfaça e se possibilite a Justiça e se torne a sociedade mais justa!
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