
A criminalização do não pagamento de ICMS declarado pelo STF e o risco do ambiente de negócios no Brasil
Postado em 25/07/2025
Por José Luiz Galvão - Sócio do GCTM Advogados, Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público (IDP), Pós-Graduado em Ciências Penais pela Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (LFG), LL.M. (Legal Law Master) em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Conselheiro Estadual da OAB/PE e Presidente da CEI-OAB/PE.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou em 2019 o Recurso em Habeas Corpus 163.334, um dos casos mais importantes julgados pela Suprema Corte naquele ano, decidindo sobre a criminalização do mero “não recolhimento” do ICMS (declarado) em operação própria.
O STF foi instado a se manifestar sobre a matéria em razão do referido RHC, cujo relator foi o Ministro Roberto Barroso, que votou pela criminalização da conduta, sendo que o Ministro Gilmar Mendes abriu a divergência.
O então Vice-Procurador-Geral da República, Bonifácio Andrada, se manifestou pela atipicidade da conduta, uma vez que a obrigação do contribuinte se dá em relação ao Fisco, entendendo que a questão do desconto do ICMS é apenas uma ficção jurídica, na medida em que há apenas a fixação do preço e o contribuinte passa a ser devedor do valor perante o Fisco.
A PGR exemplificou o caso da apropriação indébita da Previdência Social, valor que a empresa desconta do salário dos empregados e tem de recolher ao INSS. Nessa situação, o dinheiro seria do trabalhador, e a empresa se apropria de recursos que não são dela, me caso de não recolhimento.
O jurista Pierpaolo Bottini, em sustentação oral realizada no julgamento do RHC, representando a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), atuando como amicus curiae, na mesa linha da PGR, afirmou que o tipo penal não se aplica ao ICMS próprio, pois o consumidor não tem relação jurídica com o Fisco, ele não é devedor do tributo, não tem capacidade contributiva, assim, o consumidor jamais deveria ser cobrado pelo tributo.
Os Ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Luis Fux, Carmen Lúcia e Dias Toffoli, acompanharam o Relator, Ministro Roberto Barroso, entendendo que a tributação é indispensável para que o Estado atinja seus fins e que a sonegação é altamente danosa para atingir esse fim. Afirmou-se, também, que o tipo penal não restringe sua incidência a determinadas espécies de sujeitos passivos, abrangendo tanto a figura do contribuinte como do responsável (art. 121, do CTN). Outro argumento da tese, até agora, vencedora, pois formou-se maioria (6 votos a favor da criminalização), foi de que a ausência de recolhimento do ICMS não denota simples inadimplemento fiscal, mas sim disposição de recursos de terceiros, aproximando-se de apropriação tributária, além do que a tipificação não exigiria a ocorrência de fraude para a ocorrência do crime (inciso II).
Noutra linha, mais adequada, é o voto divergente do Ministro Gilmar Mendes, que foi acompanhado pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio (o Ministro Celso de Mello estava ausente), que tratou o tema sob uma vertente constitucional (como deve ser), registrando que a CF veda a prisão civil por dívida, salvo no caso do depositário infiel.
Focando nas duas teses conflitantes, fundamental abordarmos os votos do Relator Ministro Roberto Barroso e do Ministro Gilmar Mendes, vejamos.
O Ministro Barroso introduziu a matéria discutindo se o comerciante que cobra no seu preço o ICMS do consumidor final e depois não o repassa à Fazenda, deve ser considerado crime de apropriação indébita tributária ou se isso deve ser considerado mero inadimplemento fiscal.
Para ele, a lei seria inequívoca ao determinar quem é o possível sujeito ativo desse delito, no caso o sujeito passivo da obrigação tributário, que no caso do ICMS próprio, o contribuinte, o comerciante. E o objeto do delito é o valor do tributo, que nesse caso é a quantia transferida pelo consumidor ao comerciante, que tinha o dever recolhê-la aos cofres públicos.
O Ministro destacou que ponto central da análise do dispositivo é o uso dos termos “descontado” e “cobrado”. Aquele se refere aos tributos diretos descontados da fonte, citado como exemplo o IR Fonte, em que a fonte pagadora, pelo trabalho assalariado, tem o dever de reter um determinado percentual e repassá-lo aos cofres públicos. O segundo termo, “cobrado”, significa o tributo que é acrescido ao preço da mercadoria, pago pelo consumidor ao comerciante, que deve recolher ao Fisco.
Mencionou ainda que o ICMS é o tributo mais sonegado no país, citando dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. Estar-se-ia falando de 91,5 bilhões por ano de sonegação desse tributo que é a principal fonte de receita própria dos Estados membros da Federação.
Portanto, para o Ministro seria inequívoco o impacto que essa conduta produz sobre o erário, ressaltando que tão grave quanto o impacto ao erário é o impacto sobre a livre concorrência, pois empresas que sistematicamente deixam de recolher o ICMS colocam-se em situação de vantagem competitiva em relação às empresas que se comportam corretamente. Criando-se uma dualidade com efeito perverso porque na medida em que o sonegador consegue vender a melhores preços, estimulando deletério em relação ao seu concorrente, que para poder concorrer em igualdade de condições, também acabaria pode se tornar um descumpridor de obrigações tributárias. Dessa forma, a tolerância com esse tipo de comportamento seria um incentivo à incorreção.
O Ministro destacou o posicionamento do STJ, que, desde 2004, reconhecia a tipicidade da conduta, conforme entendimento do Ministro Paulo Galotti. A partir de 2014, a jurisprudência oscilou quando a Ministra Maria Thereza de Assis Moura decidiu pela atipicidade da conduta. Assim, quando a jurisprudência do STJ foi modificada, os contribuintes passaram a declarar e não recolher o tributo. Assim, o Ministro apontou que houve uma migração do crime de sonegação para o crime de apropriação - pois, não pagar não tem consequências.
Por fim, o Ministro ponderou que apesar de se tratar de RHC, aplicando-se a decisão somente às partes do processo, seria importante propor uma tese. A princípio, a tese proposta pelo Relator foi a seguinte: “O contribuinte que deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90, desde que aja com intenção de apropriação do valor do tributo a ser apurada a partir das circunstancias objetivas factuais”. Entretanto, ao final do julgamento, o Pleno fixou que “O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990”.
Por outro lado, o Ministro Gilmar abriu a divergência, utilizando como fundamento preceitos e princípios estabelecidos na CF, conforme passo a expor.
Para o Ministro Gilmar, o dolo previsto no inciso II, do art. 2º da referida norma, como elemento subjetivo do injusto em comento, qual seja, a vontade de se apropriar de valores, omitindo o cumprimento do dever tributário, deve imperiosamente ser levado em conta - tal elemento subjetivo é demonstrado quando, por exemplo, o agente dispõe de dinheiro mas não recolhe como devido, com a intenção de fraudar.
No caso em tela, o tipo objetivo se caracteriza pelo não recolhimento do tributo devido e o elemento subjetivo especial se caracteriza pela apropriação fraudulenta dos valores que se manifestam pela ausência de sua devida declaração. Sendo assim, quando o liame entre autor e fato não é suficientemente levado a cabo pela acusação estar-se-á diante de uma verdadeira imputação criminal pelo mero inadimplemento de uma dívida fiscal, sem imputação de fraude.
O Ministro, citando Hugo de Brito Machado, esclareceu que se não se está presente a vontade de fazer próprio o dinheiro que pertence ao Fisco, o que se tem é puro e simples inadimplemento da dívida. O acórdão da corte estadual, que deu início à discussão, agora, no Supremo, é claro nesse ponto, uma vez que se os processados na qualidade de contribuintes, e não de responsáveis tributários declararam todos os fatos geradores à repartição fazendária de acordo com a periodicidade exigida em lei, o fato de não recolher o tributo no prazo legal não configura o crime previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90, mas mero inadimplemento da obrigação tributária.
No caso concreto, os Recorrentes não teriam se apropriado de valor pertencente a terceiro, não havendo, portanto, a presença do elemento de quebra de confiança, depositada no substituto tributário, que justifique o ilícito penal como modalidade de fraude. Tal operação tratar-se-ia de analogia in malam partem, vedada no nosso ordenamento, sob pena de violação ao princípio constitucional da estrita legalidade.
Assim, a criminalização de mera dívida se equipara a prisão civil ferindo a Constituição e o Pacto de San Jose da Costa Rica. Nesse sentido, a liberdade individual pode responder pela fraude e não pela dívida em si. O Ministro ponderou que o objeto penal é a fraude e não a dívida, destacando que o Direito Penal Tributário exige sempre uma exegese constitucional que o impede de transformar-se em mero instrumento simbólico de coação com fins arrecadatórios.
Por fim, o Ministro demonstrou a importância de se diferenciar o tributo destacado do tributo cobrado. No caso do ICMS, o consumidor não seria contribuinte, nem sujeito passivo da obrigação, o que significa que ele jamais será cobrado pelo imposto devido na operação - não existindo relação jurídica tributária possível entre o Fisco estadual e o consumidor final de modo que não é correto considerar que o valor do ICMS embutido no preço tenha sido dele cobrado ou descontado.
Notem a diferença entre os argumentos do Ministro Gilmar e do Ministro Barroso, aquele utiliza de princípios constitucionais e conceitos de ordem tributária, enquanto este se baseia em política criminal.
Criminalizar a conduta do contribuinte, devedor do tributo declarado e informado ao Fisco, é sobremaneira inconstitucional, pois infringe o art. 5º, LXVIII da CF, que proíbe a prisão civil por dívida, bem assim fere o art. 7º, item 7 do Pacto de San Jose da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, como apontado pelo Ministro Gilmar.
Outro ponto interessante é a fraude, elemento essencial para a identificação de uma conduta criminosa tributária. Não é possível criminalizar uma conduta penal tributária sem que a fraude esteja presente. Apesar do tipo penal fazer crer que seria dispensável, isto está de todo modo equivocado, pois, fosse assim, não se precisaria eleger determinadas condutas e atribuir a elas a tutela do Direito Penal. Bastaria, assim, não pagar imposto para que o contribuinte fosse fiscalizado no âmbito administrativo e punido, automaticamente, no campo criminal.
O que diferencia a conduta fiscalizada e punida administrativamente da conduta criminosa é justamente a fraude, elemento indispensável, repetimos, para todos os tipos penais tributários, sob pena, inclusive, de se infringir o princípio do non bis is idem, pois se trataria de dupla punição pelo mesmo fato, sem qualquer diferenciação da conduta tutelada pelo Direito Penal.
Quando se declara o imposto, registrando-o em livros fiscais, óbvio, nos parece, que eliminada estaria a fraude na conduta do contribuinte, que por algum motivo, não pagou o que era devido ou, até mesmo, não apurou a diferença de crédito/débito corretamente, sendo um caso para ser discutido, tratado e cobrado no âmbito administrativo, jamais na seara penal, que é (ou ao menos deveria ser) a ultima racio.
Indubitavelmente, a sonegação de imposto precisa ser punida (administrativamente), utilizando-se de todos os meios necessários para a recuperação do crédito tributário. Porém, utilizar o Direito Penal com a finalidade de pressionar o contribuinte, sob pena de ter sua liberdade cerceada não parece justo. Mais ainda quando não estiver presente a fraude na conduta.
Mas trazendo a discussão para o campo mais dogmático do Direito Penal, sua funcionalidade e a real necessidade da sua tutela de determinados bens jurídicos, não parece crível admitir uma necessidade cada vez mais crescente de atuação do Direito Penal no âmbito das condutas fiscais, sendo mister, para preservar a efetividade da normal penal, que haja uma mudança legislativa, no intuito de adequar as exigências sociais à verdadeira função do Direito Penal, que não deve - e está longe de - ser arrecadatória.
Trata-se de tema para outro artigo, mas bastante relevante sob o ponto de vista social e econômico, necessitando de uma reforma capaz de satisfazer os anseios da sociedade, evitando que o Poder Judiciário seja o condutor de uma política criminal retrógada, menos garantista e não simpática ao discurso simbólico da criminalização.
Acontece que, inversamente proporcional ao que se espera de um Estado de Direito e do Direito Penal moderno, menos expansionista, o Estado, muitas vezes representado por membros do Judiciário, demonstra a intenção de criminalizar cada vez mais condutas, especialmente, as econômicas, que antigamente estavam distantes da intervenção penal, contudo próximas de outros ramos jurídicos, como o Cível e Administrativo.
Esta larga produção de normas denota que o legislador está perplexo com as novas situações de risco e, como forma de combater a insegurança, cria, erroneamente, tipos penais que abarcam comportamentos “intoleráveis” ou, pelo menos, que simbolizam uma resposta estatal para determinadas condutas.
Assim, é plausível que surjam propostas de descriminalização tributária, com, obviamente, a adoção de outras modalidades repreensivas, prevalecendo, conforme lições de René Ariel Dotti, a defesa da substituição do sistema penal por outros ramos do direito, mas, óbvio, como dito, isto é tema para um artigo específico. Voltemos.
Segundo Pierpaolo Bottini, o Judiciário deixou de ser um órgão de concretização da política criminal do legislador, para se tornar o produtor de diretrizes políticas próprias. Na verdade, as decisões judiciais têm o condão de definir a escolha da estratégia de controle social e econômico pelo instrumento penal, o que é lamentável.
Portanto, o critério de criminalização de qualquer conduta sempre será o resultado de uma a política criminal eleita, através da qual a transformação de uma infração administrativa em um crime depende da vontade, precipuamente, do legislador.
Contudo, o STF, com a decisão firmada, compreendeu como criminalizável a conduta do mero não recolhimento de ICMS na operação própria, mesmo restando claro, com o apoio de conceitos e procedimentos de ordem tributária, que no ICMS (próprio) o consumidor não paga o tributo, mas sim o preço total do produto/serviço, não existindo, assim, apropriação indébita, pois não existe coisa alheia a ser apropriada.
Diante da decisão pela criminalização, já passados 05 anos, vem tendo forte impacto àqueles empresários que enfrentam a real complexidade do sistema tributário e vivem situações de falta de pagamento (não apenas) de ICMS, em razão das mais variadas razões (que não sonegação), o que, por sua vez, traz consequências ao ambiente de negócios no Brasil, pois os crimes fiscais e os seus riscos passam a fazer parte dos debates empresariais.
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