Um milhão de habeas corpus no STJ: Disfunção Sistêmica ou Reação Necessária?

Um milhão de habeas corpus no STJ: Disfunção Sistêmica ou Reação Necessária?

Postado em 04/05/2025

Por Gina Ribeiro Gonçalves Muniz — Defensora Pública do Estado de Pernambuco e Mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra


Nos últimos anos, a quantidade "excessiva" de habeas corpus tem
sido tema recorrente entre os juristas. Em 30/04/2025, o Superior Tribunal de
Justiça atingiu a marca simbólica do habeas corpus de número 1.000.000. Mais do
que um dado alarmante, esse número revela, de forma eloquente, a face crua de
um sistema penal que opera em desequilíbrio. A multiplicação dos habeas corpus
não é apenas uma estatística: é um sintoma de questões estruturais que precisam
ser enfrentadas com seriedade.

A defesa é comumente apontada como a principal responsável por esse
cenário, sob a alegação de interpor habeas corpus de forma abusiva. No entanto,
essa narrativa simplifica uma realidade complexa e, muitas vezes, encobre as
verdadeiras disfunções do sistema.

Não se nega que seja necessário, sim, que a defesa assuma sua parcela de
responsabilidade, evitando a impetração de habeas corpus manifestamente
improcedentes ou desprovidos de fundamentação mínima. O uso consciente e
qualificado dos instrumentos processuais é fundamental para a credibilidade da
própria advocacia/defensoria pública e para a efetividade do sistema de
justiça. Contudo, esse compromisso ético da defesa não pode servir de escudo
para encobrir falhas estruturais nem justificar a naturalização de ilegalidades
praticadas em série.

É urgente lançar luz sobre outras causas estruturais igualmente
determinantes para o congestionamento processual — como a má qualidade das
investigações, a banalização da da prisão preventiva, a ausência de
fundamentação adequada nas decisões judiciais e o despreparo técnico de órgãos
da persecução penal. Ignorar essas variáveis é continuar a responsabilizar a
defesa por resistir, quando o verdadeiro problema é o sistema que insiste em
atropelar garantias.

Falar em “excesso” de habeas corpus sem encarar essa realidade é inverter
o problema. O que está em excesso, na verdade, é a violação sistemática do
devido processo legal, da ampla defesa e da presunção de inocência. Enquanto
isso persistir, o habeas corpus continuará a ser o remédio mais buscado por
quem precisa respirar justiça em meio ao sufocamento do sistema penal.

Outro fator que contribui de forma decisiva para o elevado número de
habeas corpus é a ausência de uma cultura sólida de respeito aos precedentes no
processo penal. Se, por um lado, muitos magistrados de primeiro e segundo graus
se amparam no princípio do livre convencimento motivado para afastar
orientações consolidadas pelas cortes superiores, por outro, a defesa — seja
pública ou privada — vê-se compelida a recorrer ao remédio constitucional como
meio de sanar reiteradas ilegalidades. Em diversas ocasiões, é por meio do
habeas corpus que importantes teses jurídicas são reconhecidas e consolidadas.
No entanto, como tais decisões, em regra, não possuem força vinculante, acabam
não sendo replicadas pelas instâncias inferiores. O resultado é um círculo vicioso
de descumprimento e reiteração, que retroalimenta o congestionamento dos
tribunais superiores com incontáveis impetrações sobre questões já pacificadas.
A falta de observância dos precedentes, portanto, não é apenas um problema
técnico: é uma das engrenagens que movimentam a ineficiência do sistema penal.

Não se pode também ignorar que o habeas corpus é frequentemente utilizado
como sucedâneo recursal. Essa prática, embora muitas vezes criticada, possui
razões legítimas que não podem ser desprezadas. A ampla utilização do writ em
substituição a recursos extraordinários se explica, em grande medida, por sua
maior celeridade, pela menor exigência de formalidades e, principalmente, por
sua eficácia concreta na tutela da liberdade. É exatamente essa efetividade que
justifica, na prática, sua utilização ainda que, tecnicamente, não seja o meio
impugnativo mais adequado à situação específica.

Nessa esteira, calha frisar que o ministro Ribeiro Dantas, relator do habeas
corpus de número 1.000.000, propôs que o legislador promova uma revisão dos
recursos penais ordinários, à semelhança do que ocorreu no processo civil com o
fortalecimento do agravo de instrumento. A ideia é permitir que questões
relevantes sejam apreciadas com maior celeridade e efetividade dentro dos
próprios mecanismos recursais típicos, reduzindo a sobrecarga do habeas corpus.
Com isso, esse remédio constitucional poderia, enfim, retornar ao seu papel
originário: atuar como garantia excepcional e urgente contra ilegalidades e
abusos que atentem diretamente contra a liberdade individual.

Em arremate, a análise meramente quantitativa dos remédios
constitucionais submetidos ao crivo do Poder Judiciário conduz a uma leitura
simplista e reducionista do congestionamento processual, como se este
decorresse unicamente da atuação dos sujeitos processuais, em especial da
defesa. Esse enfoque estabelece uma relação superficial de causa e efeito que
desconsidera fatores estruturais e institucionais mais profundos, além de
contribuir para a estigmatização de funções essenciais à justiça, cuja atuação,
embora suscetível a críticas pontuais, é elemento fundamental da garantia de
direitos no Estado Democrático de Direito.

É inegável, contudo, que a responsabilidade pela efetividade e
racionalidade do sistema de justiça é compartilhada. A defesa deve agir com
parcimônia, evitando a impetração de habeas corpus manifestamente improcedentes
ou desprovidos de fundamentação mínima, sob pena de banalizar um instrumento
essencial. Por sua vez, o Judiciário precisa respeitar com rigor o devido
processo legal, conter arbitrariedades e consolidar uma cultura de precedentes,
o que traria previsibilidade e reduziria o número de habeas corpus.

Enquanto esse equilíbrio institucional não se consolida, o habeas corpus
continuará a cumprir sua histórica função de proteção da liberdade,
permanecendo como a última ferramenta contra a violação do direito à liberdade e,
não raras vezes, como a única via acessível à defesa diante de um processo
penal frequentemente permeado por abusos e descompassos. Longe de ser vilão, o
habeas corpus é, ainda hoje, um instrumento vital para a contenção dos excessos
do sistema punitivo.


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